Como líderes constroem significado
O paradoxo do propósito na liderança
É fundamental que se olhe para métricas e resultados, mas existe uma dimensão mais profunda da liderança que raramente aparece nos manuais de gestão. Líderes verdadeiros são, antes de tudo, arquitetos de significado em terrenos frequentemente áridos de dados e urgências operacionais.
Esta capacidade transcende competências gerenciais convencionais. Não se trata apenas de coordenar recursos ou monitorar indicadores, mas de responder a uma pergunta fundamental: por que nosso trabalho importa?
Reflexão: Quando foi a última vez que você, como líder, dedicou tempo não apenas para comunicar o "quê" e o "como", mas principalmente o "por quê" das iniciativas sob sua liderança?
O líder como intérprete da realidade
Luiza Trajano, presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza, exemplifica esta função interpretativa em sua liderança durante a transformação digital da empresa. Ela sempre destaca como sua abordagem vai além da implementação de tecnologia:
"A transformação do Magazine Luiza nunca foi apenas sobre tecnologia ou processos. Sempre dedicamos tempo para compreender coletivamente as mudanças no comportamento dos consumidores e na sociedade. Cada colaborador precisa entender não apenas o que estamos fazendo, mas por que isso importa para as pessoas que servimos."
Esta prática não é uma ferramenta de produtividade, mas um convite à construção de um senso coletivo de propósito. Antes de fazer, compreender. Antes de agir, interpretar.
Um parêntese: nessa mesma linha deriva o melhor conceito que marketing que já vi até hoje, definido por Raimar Richers, austríaco radicado no Brasil. Para ele, marketing é entender para atender. Simples assim.
O propósito no dia-a-dia
Existem práticas que podem incorporar esta dimensão ao trabalho diário sem transformá-la em "mais uma tarefa":
O poder das perguntas
Em reuniões rotineiras, experimente substituir a tradicional abertura "vamos à pauta" por uma pergunta que convide à reflexão compartilhada:
"Que diferença fizemos para nossos clientes esta semana?"
"Como nosso trabalho hoje se conecta ao que prometemos?"
"Como estamos construindo nosso propósito neste projeto?"
Estas não são perguntas retóricas, mas convites genuínos à reflexão coletiva. Na Votorantim Cimentos, o diretor de operações Paulo Henrique Macedo implementou esta prática em 2022 e documentou os resultados: após seis meses, a pesquisa de clima registrou aumento de 23% no item "compreendo como meu trabalho contribui para os objetivos da empresa" e as equipes começaram a propor espontaneamente melhorias alinhadas à estratégia de sustentabilidade.
A narrativa como ferramenta
Quando precisar implementar mudanças, considere:
Contexto histórico: como esta mudança se conecta à jornada que já percorremos?
Realidade presente: que desafios ou oportunidades atuais tornam esta mudança necessária?
Horizontes futuros: que possibilidades esta mudança nos permite explorar?
O Grupo Boticário, por exemplo, ilustra bem esta abordagem durante sua expansão internacional. Em vez de simplesmente anunciar novos mercados como metas de crescimento, a liderança construiu uma narrativa que conectava a expansão à história de pioneirismo da empresa e seus valores fundamentais de valorização da biodiversidade brasileira. As mudanças foram apresentadas não apenas como objetivos comerciais, mas como um novo capítulo coerente em uma história de propósito que já estava em desenvolvimento.
A dimensão humana dos dados
Os dados são essenciais, mas não são suficientes. Líderes que constroem significado desenvolvem a capacidade de transformar números em histórias humanas e estas em resultado.
Sugestão: ao apresentar resultados financeiros, você pode complementar cada métrica com seu resultante e como ele transforma números em histórias de impacto. Por exemplo, um crescimento de 12% em vendas pode representar milhares de novas famílias atendidas, cada uma com suas necessidades e aspirações. Esta prática conecta o trabalho cotidiano ao propósito maior da organização e inspira colaboradores a enxergar além da tarefa.
Reflexão: Como os dados que você monitora se conectam a histórias humanas reais? Que rostos, nomes e experiências existem por trás dos seus KPIs?
Navegando incertezas com propósito
Em momentos de instabilidade, a tentação é buscar certezas absolutas ou fingir confiança inabalável. Líderes que constroem significado oferecem uma terceira via: abraçar a incerteza sem sucumbir à desorientação.
O Itaú, durante transições estratégicas importantes, implementou "Diálogos de Clareza" onde a liderança:
Reconhecia abertamente o que ainda não sabia
Compartilhava o que já estava claro
Estimulava a consciência coletiva sobre o momento presente
Esta prática não pretende eliminar a ansiedade, mas transformá-la em curiosidade compartilhada. Não prometeu certezas prematuras, mas ofereceu um caminho para navegar juntos o desconhecido.
Desenvolvendo sua capacidade interpretativa
A construção de significado não depende apenas de técnicas, mas de uma sensibilidade que pode ser cultivada:
Exposição a perspectivas diversas: com frequência, dedique tempo a compreender visões diferentes da sua. Líderes devem ser incentivados a explorar disciplinas aparentemente distantes de suas especialidades;
Momentos de reflexão: reserve espaços em sua agenda não para "fazer" nada, mas para refletir sobre significados mais amplos. Uma boa prática é manter 2h semanais dedicadas exclusivamente a esta reflexão;
Escuta ativa: desenvolva o hábito de ouvir não apenas para responder, mas para compreender como outros interpretam a realidade compartilhada.
O impacto silencioso do propósito
Os efeitos desta dimensão da liderança são reais, ainda que nem sempre capturados em relatórios trimestrais:
Equipes que encontram significado demonstram resiliência durante crises;
A inovação floresce naturalmente o propósito é claro no seu dia-a-dia;
A colaboração torna-se menos dependente de processos formais quando existe propósito compartilhado.
O Nubank, por exemplo, atribui parte de seu crescimento acelerado a uma cultura onde o propósito de democratizar serviços financeiros é consistentemente conectado às tarefas cotidianas. Entendendo esse propósito, líderes e colaboradores não param de pensar em novas - e melhores - formas de atingir esse propósito.
Uma prática para começar
Se este tema ressoou com você, considere um exercício simples:
Antes de sua próxima reunião importante, dedique 15 minutos para responder por escrito:
Como esta iniciativa se conecta ao propósito maior que nos une?
Que significado existe por trás das atividades que estamos coordenando?
Como posso tornar isso mais visível para minha equipe?
E lembre-se sempre de fazer sentido antes de fazer barulho.
Nos vemos em breve! 😉
Felipe Gondin
Excelente conteúdo 👏👏👏
Faço questão de tirar um tempo em silêncio para ler cada news.