Vivemos um paradoxo: nunca tivemos tanto acesso a dados e, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão distantes de saber o que fazer com eles. Acreditamos que nossas decisões são guiadas por uma visão clara da realidade, mas suspeito que muitos de nós, líderes de negócio, estejamos apenas olhando para sombras na parede.
Explico.
Há 2.400 anos, por volta do ano 375 a.C., Platão nos deu uma poderosa alegoria sobre percepção e realidade: o Mito da Caverna, publicado no livro A Republica. Ele descreveu prisioneiros acorrentados desde a infância, forçados a olhar para uma parede onde sombras de objetos eram projetadas. Para eles, aquelas sombras não eram representações; eram a própria realidade.
Hoje, vivemos em uma nova caverna, uma caverna algorítmica.
Nossos feeds de notícias, as recomendações da Netflix, os resultados do Google e, mais perigosamente, nossos próprios relatórios internos de BI e CRM são as novas paredes. Os algoritmos, alimentados por nossos comportamentos passados e vieses de confirmação, são os novos manipuladores de marionetes, projetando uma realidade curada, simplificada e perigosamente confortável. Eles nos mostram mais do mesmo, reforçando o que já sabemos, e nos fecham para a diversidade, a criatividade e a complexidade do mundo real.
Essa miopia algorítmica não é um exercício filosófico; é um risco de negócio tangível. Ela cria uma falsa sensação de conhecimento que leva à estagnação e ao fracasso.
O cemitério das empresas que amavam suas sombras
A história dos negócios é um cemitério de empresas que confundiram as sombras de seu sucesso passado com a luz da realidade futura. Você já conhece os casos, mas vou relembrar alguns deles:
Blockbuster: a caverna da Blockbuster era definida por lojas físicas e um modelo de negócio baseado em multas por atraso. Em suas paredes, a Netflix era apenas uma sombra bruxuleante, um serviço de nicho pelo correio. Eles não viram a forma real do futuro do consumo de mídia – o streaming – porque estavam ocupados demais otimizando a realidade de suas sombras.
Nokia: a caverna da Nokia era forjada em engenharia de hardware e eficiência de produção. As sombras que viam eram as de celulares duráveis, com baterias longas e teclados físicos. O iPhone, ao surgir, não era um "telefone" segundo as definições de sua caverna. Era um brinquedo frágil com uma bateria pífia. Eles não perceberam que a realidade havia mudado do hardware para o software e o ecossistema de aplicativos.
Microsoft (Tay AI): em um exemplo mais moderno, a Microsoft lançou "Tay", um chatbot de IA no Twitter, para aprender com as interações humanas. Acontece que a "caverna" em que a colocaram era tóxica. Em menos de 24 horas, o algoritmo, aprendendo com as sombras de trolls e extremistas, transformou Tay em uma entidade racista e ofensiva. Um fracasso retumbante, nascido de uma visão míope sobre a "realidade" de uma plataforma aberta.
O padrão é o mesmo: a liderança se torna tão eficiente em analisar as sombras que esquece que existe um mundo de luz lá fora.
Saindo da Caverna: insights para o líder estratégico
Como gestores, nosso papel não é ser o melhor espectador de sombras. É ser o prisioneiro que tem a coragem de se libertar, suportar a dor da luz ofuscante da realidade e, o mais difícil, voltar para guiar os outros.
Como fazer isso na prática?
Monte equipes “anti-algoritmo": a maior defesa contra a miopia é a diversidade cognitiva. Construa equipes deliberadamente com pessoas de diferentes formações, experiências, idades e visões de mundo. Se seu dashboard diz uma coisa, mas a pessoa com uma vivência completamente diferente na equipe sente outra, investigue essa dissonância. É aí que mora a verdadeira inteligência;
Institucionalize o desconforto produtivo: estimule a figura do "advogado do diabo". Crie um ambiente de segurança psicológica onde sua equipe se sinta à vontade para ser a pessoa que diz: "Acho que essas sombras na parede estão nos enganando". Uma pessoa que desafia o consenso baseado em dados curados não é um problema; é seu ativo estratégico mais valioso;
Torture seus dados: olhe para seus dashboards e esprema até que eles confessem algo. Pergunte: "O que estes dados não estão me dizendo?". Quais vieses foram embutidos na coleta? Quais métricas estamos ignorando por serem difíceis de medir? Forçar essa análise é o primeiro passo para entender a diferença entre a ilusão e a realidade;
Promova uma dieta de informação analógica: incentive a si mesmo e sua equipe a buscar conhecimento fora da caverna digital. Leia livros de ficção e história. Visite museus. Pegue um ônibus. Converse com pessoas em cafés. Faça trabalho de campo. Essas fontes de dados não estruturados e analógicos são a luz do sol que expõe a pobreza das projeções algorítmicas.
A verdadeira liderança estratégica não é sobre quem tem os algoritmos mais rápidos, mas sobre quem cultiva a sabedoria para olhar para além deles. E junto a eles.
É sobre entender que o futuro de sua marca e de sua empresa não será construído reforçando as crenças do passado, mas estando dispostos a desafiar a si próprios, buscando entender o que vem pela frente.
Nos vemos em breve! 🙂
=========
➡️ Em tempo: se você acha essa reflexão interessante para seus gestores e colegas, clique aqui para entrar em contato e saber mais sobre a palestra Faça Sentido Antes de Fazer Barulho, que traz provocações e reflexões sobre nosso papel de gestores.
Muito boa a análise, Felipe. Pra fazer todos refletirem sobre esse novo mundo dos algoritmos. Forte abraço